Além de berço e abrigo de artes e artistas de vulto, Picasso, Dalí, Joan Miró, Ferrer, de abrigar Guëll e seu parque, Gaudi e sua Sagrada Família, Barcelona foi e será a pátria rebelde do diferente. Não do esquisito, do esotérico ou do exótico, do simplesmente diferente. Seu dialeto, suas ruelas, suas ramblas e a herança visigoda ainda viva.Barcelona, onde a cidade e o cais se misturam, onde iates e veleiros são vias, onde a cidade é o cais, o cais é a cidade e suas ramblas são cais onde aporta o mundo, abrigam o mundo e suas naves, convés de barcos e gaivotas para calçadas de onde escorrem as pessoas, visitantes e nativos, num jorro de ir e vir, para Colón, Barceloneta, Praça de Catalunya e Montjuic, onde um teleférico sobrevoa Miró, o cemitério judeu e o azul do Mediterrâneo transformado pela noite em escrínio marinho para as jóias da princesa, brilhando forte sob o holofote de mil bares, restaurantes e naves da orla onde gaivotas peroladas lutam com carpas prateadas por banquetes noturnos.
Barcelona à noite multiplica-se em jovens insones, planetários, da China e da Cochinchina, Europa, França e Bahia, Arábias e Bavárias, como um jorro de algum casal primevo, uma Eva multi-multípara, lançando-os em parição miriadítica, a calles e baladas onde pulsa com as luzes um som techno até madrugada, quando a horda adolescente se mistura à procissão adulta, caras e bocas, eles e elas, eles e eles, elas e elas, diferentes, belos e indiferentes.
De qualquer lugar, de qualquer ponto, de qualquer porto e qualquer posto, de convéses ou de ramblas, de ruelas ou de cais, é o mesmo posto de observação de onde em qualquer estação se verá escorrer o magma da humanidade, o que vive, o que trabalha, o que vende e o que compra, o que faz arte ou o que passeia, do cais para Colón, da Plaza para El Corte Inglés, da Fundación Picasso à Fundación Miró, do Parque Guell a Montjuic, das Tapiés à Diagonal, do museu marítimo ao Parque das Aigues, da Catedral ao Parque Güell, da Casa Milá à Sagrada Família, dos jardins de Pedralbes ao grande Aquarium . Centenas de bicicletas disputam espaço com Mercedes e Smarts, com Polos e Ferraris, parando apenas para admirar uma roncante Harley-Davidson 1960, montada por um nórdico que oferece flores a uma americana (ou seria o contrário?).
Barcelona onde a noite e o dia são um só. Onde os irrequietos lêmures de Madagascar convivem com o calmo róseo dos flamingos no Zoo onde um pavão acompanha todos os passos de quem se mostrar amigo, levando-lhe em saltadilhas à estátua do cão sem dono onde se lê uma homenagem do poeta Euras aos viralatas do mundo.
Barcelona, onde se detém a multidão diversa dos privilegiados, a flor d´Europa e os turistas acidentais, mixando dialetos ao seu dialeto bárbaro, onde as luzes, o azul tênue do ar e a variedade colorida de roupas e flores são o epílogo luxuoso de um tempo que não passa e não apodrece, que viça à brisa do Mediterrâneo, sempre noviça, esperando os que não a conhecem e o retorno dos que um dia amaram uma cidade-princesa catalã.