Quando médico recém-formado, trabalhei no Hospital Sanatório Otávio Lobo, do sistema penitenciário da Secretaria de Justiça do Ceará, um hospital-presídio que abrigava presos com problemas clínicos e pulmonares, sobretudo tuberculose.
Gostava de conversar com eles, duplamente castigados pelo destino.
Recebia presentes artesanais feitos por eles, mas dentre todos os pequenos mimos que recebi, um ficou inesquecível: um casal de canários numa pequena gaiola, pegos por um dos detentos em um alçapão montado no pátio. Levei-os para casa, no caso um pequeno apartamento na Praia de Iracema, e coloquei-os na lavanderia do AP, (único local obviamente adequado). Batizei-os de Otávio e Loba.
Quando tinha tempo, no corre-corre da vida de médico, ia apreciá-los na gaiola. E lá estava ele, o canário macho, feio, mudo e aparentemente desorientado. Acima de tudo desconfiado. Não voava de seus pequenos trapézios nem andava – pulava. Pulava como um pardal!
Mesmo nos meses de inverno, (período genético para sua procriação – de acordo com a Wikipedia), desprovido de libido, expulsava sistematicamente a fêmea de sua caixa-casinha para acasalamento. Loba, de desgosto (?), logo o deixou viúvo.
A partir daí o miserando Fringillida começou a ensaiar uns pios, não gorjeios, pios mesmo, dignos de um pinto. De caráter musical neutro, nem em tom maior alegre, nem em tristes tons menores.
Logo percebi seu caráter, sua personalidade esquizotímica: passava o dia na janela de sua casinha mas se alguém se aproximava, Otávio entrava e ficava brechando lateralmente com um dos olhos pela janela oval. Sempre me interrogava: teria algo a ver com sua criação, com sua convivência ou com o lugar em que foi criado? Se estava bicando seu alpiste e alguém se movimentava por perto, pulava de volta para a jaulinha. Não enfrentava o mundo ao seu redor!
Como a lavanderia tinha comunicação para o jardim do prédio, um dia abri a gaiola e propositalmente a deixei aberta, na esperança, você sabe, de Otávio ganhar o mundo e recomeçar sua vida livre, leve e solto. Mas ele, na dele! Olhou o mundo de sua janela com aquele olho monoscópico e calhorda e apesar de fisicamente sadio, esbelto, plumas ricas e limpas, ornado de bela cor, pronto para alçar vôos mais altos, Otávio não se mexeu e lá ficou.
Não acasalou, não cantou, não voou, nem brigou mundo afora pela sobrevivência. Mas passei a gostar mais de Otávio, um canário que não fazia nem força prá ser canário, um herói existencial, um legítimo e emplumado personagem digno de um conto de Sartre, ou melhor, de Jean Genet, o preso, dramaturgo e escritor existencialista.